NOVO BEIJO


Mauricio Salles Vasconcelos


A frontalidade do corpo e do lugar autorecorrente da imagem tomada de imediato no filme realizado por Daniel F. não se faz ilustrativa. Não decorre da simples remissão a uma cadeia avalizadora de signos visuais e culturais. Embora se frise um fio referencial nitidamente endereçado a Mallarmé, Joyce, Godard, Brakhage, Duchamp e a tantos índices onomásticos produtores de construtos e castelos da pureza experimental (fazendo aqui uma paráfrase de Octavio Paz), Daniel Fagus ou ainda Fagundes faz variar seu longa videográfico no compasso de um foco propositivo. Pode-se captar em seu filme de muitos títulos e instâncias rítmicas a intrincada mimesis do pensamento de que se nutre o movimento das imagens áudio-visuais, como formula Hollis Frampton em torno de Eisenstein, a existência do cinema na casa ou morada da palavra, como quer Fagus. E isso é visto e conceituado numa retomada desabrida da fórmula clássico-moderna de Heidegger – A linguagem é a casa do ser –, reiterada pelo entrecho paródico de Duas ou três coisas que sei dela. Formulação que passa pelo Derrida, leitor de Blanchot no livro Morada, logo associada ao Nietzsche de Julio Bressane. Numa tela estriada em três faixas simultâneas, os rostos dos filósofos se intercomunicam, através de fluxos contrastantes de superposição. Numa caminhada depois do campo filosófico: o verbal, a voz em proposição e conceitualidade, a escrita mesmo a tomar o espaço vídeo-fílmico não são estranhas ao que se vê. Nem produzem fácil correspondência. Não dispõem de uma subentendida legenda, de um código para os aparentemente segmentados circuitos de arte, inerentes que são a qualquer construção cinemática.


Falar não é ver, já apontava muito cedo Blanchot, repercutindo no universo de Foucault o plano das visualidades posto em cheque entre palavras e coisas do discurso. Ver não se ajusta ao padrão visual consentido sob controle de um subtexto narrativo. Não ao acaso, a fala intercepta o fácil fluir das imagens cinematográficas tão falsamente consolidadas. Fagus relança os dados mallarmaicos numa fonte incessante de água, abarcada como o corpo e o grão da voz, na mesma altura do pigmento/partícula da imagem, através da frontalidade da paisagem ao natural.


O poder de interromper o fluxo do filme-experimento como colagem favorecida pelo patchwork pixel da linguagem videográfica se mostra impactantemente. Distancia-se do enquadramento numa estética prévia. Vê-se e lê-se, ao mesmo tempo, e não como uma única dimensão: um filme de amor. Não é à toa que o título de Bressane, de 2004, é revisto em toda sua confluência de leitura geradora de novos recortes acerca do amor pelo cinematismo e pela vida imediata. Acerca da amizade, também, o filme se firma pelo indissociável pensar o movimento e os corpos por tudo que têm de estranho e alterno quanto mais se miram e testemunham os índices da história pessoal e das predileções de um jovem videasta.


Nesse filme em curso, como é autodenominado e por escrito, a ida à origem do mundo, visível no primeiro take, justo o célebre quadro de Courbet, não se aparta da questão-chave de todo seu percurso: a origem da imagem. Essa do áudio-visual contemporâneo, que Daniel F. repertoria no mesmo gesto com que inventa uma trilha. A passagem por um vale tão acidentado quanto o Valley 69 do Sonic Youth ou aquele de Robert Kramer em Cités de la plaine se entremostra pela vertente que se abre entre a encenação da arte e o microvácuo do sentido lançado pelo corpo, como faz e pensa o dançarino mineiro Marcelo Gabriel.


Entre a ópera multimediática e o álbum biográfico, Fagundes, coreógrafo, ator, pesquisador de literatura, músico e videasta, não fica sem cartografar a arqueologia do cinema visionário-experimental ainda em curso, que dá base a várias frentes da produção cinemática de hoje. A coreografia e o salto propositivo, colhido como o satori de um bailarino oriental já se deixava flagrar nas desbravações de Maya Deren, nos anos 1950. De Brakhage, o cineasta em pauta extrai um intercâmbio – um intercurso, melhor dizendo – nada aplainado de luminações magnéticas, moleculares da luz e das figuras naturais, acrescendo-as de uma velocidade-vortex que lê-se, também, como o córtex de um cinema que se autogera, meditativo-proposicional a partir do repertório exposto em seu itinerário poemático e, simultaneamente, narrativo.


Pensar com imagens enquanto se registra o seu suceder – Implicações advindas do que se cita e se gesta no campo coetâneo, logo corolário de sua inserção. Nada vem como adereço estilístico ou culturalista. Evita-se o pó do pós-moderno, termo já sem uso, sem potencial de fazer correr o tempo dessa hora, já outra, onipresente e inominada, secular-milenar aceleradamente efêmera.


Um musical? Poderia se indagar o grande poeta atual que é Ricardo Domeneck, DJ e videomaker. Sim, com outro sim. Moving Visual Thinking, como queria Brakhage. Uma proposição em dança. Ao tempo em que se dá a domesticidade, a convivência de um casal coreográfico, ele, o autor, e sua partner/parte de si, Júlia Rocha. No ato em que um se faz como duo não-dialético, não-fusional, sob o toque desnudado do um ao um.


Como não percorrer música e silêncio, numa extensão que vai dos corpos ao sussurro das árvores ou a tudo o que não-diz as crianças, tão-somente um grito. Dançarinos de Beckett no palco da companhia Key & Zetta, Fagus e Rocha vão para a natureza registrar o atalho lilás que está no vestido e já está vertido nos sulcos de terra e água da mesma cor, como se redesenhassem linhas de Rimbaud. O cinemático se revela como genético e plural. Insemina-se nos limites e na gênese do cinema, aqui buscada na intimidade, que é, também, socialidade do casal em experiência. Os dois mostram seus corpos por inteiro na intensidade tal qual palavras grafoprojetadas em diagrama e diorama. Genesíaco da existência mulher-homem, o filme se revela genealógico de seus procedimentos e dispositivos quanto mais se joga ao tempo techno dos recursos da visualidade.


A história corrente se faz indiscernível daquela do tempo ultramediático das imagens em síntese e saturação da exorbitância espetacular do mundo-arte-internáutico-interativo. A contrapelo do voyeurismo da hora, esse filme ruma para seu próprio silêncio, pontuado de voz-música, que é própria do cinema. “I’m thru writing”, encerra o paradoxo do cineasta Brakhage, tão aferroado à imagética de seu projeto, tomado de síndrome logofóbica.


O filme fala e se faz por dança. Não ilustra seu corpus com o croma técnico da arte sustentada pela ausência de risco. “Vamos chamar o vento…” Intempestivo, Caymmi lança seu assovio ancestral ascendente na voz, na pele de Fagus. Enquanto Plexus, de Henry Miller é jogado ao fogo para salvar suas próprias chamas. O cinema se atualiza. A linguagem é uma falha humana, andante, em andamento. No limite da voz, da respiração das imagens pensadas sobre a delícia e o decurso humano-feminino: dá-se um beijo. No sempre-fim de tudo. Um novo beijo.
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